
Sim, ter filhos é incrível. Mas isso não invalida que se assuma que nem sempre estamos felizes no processo ou que cuidar de um bebé seja uma tarefa extenuante. Um trabalho de 24h sobre 24h com raras pausas para café (ou até para comer), amplamente desvalorizado, que continua a ser feito na maior das invisibilidades e que ainda é tido como um dever maioritariamente feminino. Já é altura de se mudar a narrativa romanceada sobre a maternidade, como se as mulheres tivessem um dom natural para isto só porque são mulheres: esta é uma mentira perversa, que apenas serve para alimentar angústias, deceções, silêncios, papéis de género, regras do jogo. E justificar os lugares de cada um e cada uma – ou a falta deles – na sociedade.
Vamos por partes: a minha filha é a minha pessoa preferida no mundo e nada bate o amor que sinto por ela. Mas isso não me impede de assumir que este primeiro ano e meio de cuidados prestados a uma bebé tenha sido das coisas mais extenuantes, física e psicologicamente, que algum dia fiz na vida. Onde tantas vezes a felicidade extrema se misturou também com frustração, insegurança e, volta não volta, um questionamento desesperado sobre o que raio fui fazer eu à minha vida. Nada disto faz de mim má mãe ou má pessoa, apenas humana. E escusado será dizer que não trocava este ano e meio por nenhuma outra coisa. Mas era bom que se falasse mais sobre isto sem pudores, que se desse espaço às mães para um pouco de queixume sem serem automaticamente censuradas. Além de pouco honesto, é irresponsável romancearmos a maternidade, apregoando que é simplesmente o melhor do mundo. Sim, ter filhos consegue ser o melhor do mundo. Mas também muitas vezes não o é. E não há mal nenhum em sermos realistas quanto a isto. Ou pelo menos não devia haver.
A verdade é que muito se fala do parto, já quanto ao pós-parto (esse enorme buraco negro) e primeiros anos dos bebés, das alterações profundas que esse compromisso traz às nossas vidas, das angústias associadas, da complicadíssima equação de conciliação da vida familiar e profissional, das pressões sociais e laborais que tantas mulheres enfrentam, da sensação constante de culpa por não conseguirmos estar 100% presentes em nenhuma destas duas dimensões (em boa parte porque ainda nos exigem e fazem acreditar que é suposto ser possível) e da enorme falta de rede de suporte que hoje em dia temos, principalmente nos meios urbanos, pouco se ouve falar. Como se tudo isto fosse um enorme segredo a manter. Carregado de sentimentos de falhanço, de ansiedade e, acreditem, de vergonha. Vergonha de não estarmos a explodir de felicidade a tempo inteiro… afinal, não é isso que nos dizem que vamos sentir a partir do momento em que temos a criança nos braços? E porque sabemos que há mulheres a viverem situações inenarráveis mundo fora, portanto é uma vergonha gigante sentirmo-nos mal dentro do nosso privilégio. Mais, mais uma vez, não devia ser.
Um trabalho de 24h sobre 24h, sem pausa para café
Vou falar de mim, porque quanto mais converso sobre isto com tantas outras mulheres mais me apercebo que isto é totalmente comum e transversal. Mesmo tendo uma noção minimamente clara sobre o impacto da chegada de uma criança na minha vida, não estava de todo preparada para a realidade pura e dura. Ser cuidadora de uma bebé a tempo inteiro foi a tarefa mais difícil que já desempenhei. Um trabalho amplamente desvalorizado, que continua a ser feito na maior das invisibilidades e que ainda é tido como uma obrigação maioritariamente feminina. Com uma carga de 24h sobre 24h e raras pausas para café (ou até mesmo para comer). Em cima de um corpo por vezes feito em cacos e que mal reconhecemos como nosso durante largos meses. A tentar superar a violência do parto que – embora não tenha sido o meu caso – pode ser uma experiência traumática (tema que tem tanto para dizer que ficará para outra prosa). Num exercício constante de resiliência física e emocional, dentro de um ciclo vicioso de privação do sono e da liberdade. E tantas vezes afundadas numa solidão profunda, mesmo que tenhamos ao nosso lado companheiros ou companheiras presentes. A solidão profunda, e totalmente interna, de quem também nasceu de novo no meio daquele turbilhão e que ainda não se conseguiu encontrar para além do papel de mãe.
A vida, como a conhecíamos, com os nossos planos e espontaneidade, deixa de nos pertencer. Já não mandamos no nosso tempo, nem a nossa vontade impera. ’Então mas do que é que estavas à espera?’, há-de alguém eventualmente dizer à bruta, quando na verdade só queríamos um pouco de empatia. Bom, no meu caso, não estava à espera de não ter tempo sequer para tomar banho, por exemplo. Ou que os meus mamilos ficassem em carne viva ao fim de uns dias e que cada vez que tentava dar de mamar tinha de morder os lábios com as dores. Ou que as minhas pálpebras não parassem de tremer ao fim de uns meses sem dormir mais de 3 horas seguidas. Ou que isto de não dormir mais de 3 ou 4 horas seguidas pudesse durar mais de um ano, com todas as consequências mentais que acarreta. Ou que os dias se podiam tornar alienantes, numa repetição constante de tarefas como se fosse eu um ratinho estoirado a andar numa roda. Ou que ouvir uma criança a chorar horas a fio com cólicas pode ser um género de tortura. Ou que depois de nove meses com toda a gente focada no meu-estar, o comentário que mais me iria ser feito ia ao encontro da recuperação do meu peso, como se fosse essa a prioridade, e não a recuperação do processo violentíssimo que é o parto. Ou que as alterações hormonais fossem um carrossel incontrolável, tal qual tempestade tropical a cair de repente nesta bonita praia do amor maior. Mas essa parte já ninguém quererá ouvir, porque assumirmos que isto da maternidade não é um filme cor-de-rosa, ainda não é bem aceite.
Seguimos alavancadas não só pela força do tal amor maior, mas também, não tenho dúvidas, pelo sentido da responsabilidade que é manter aquele pequeno ser humano que depende totalmente de nós e que não escolheu sozinho vir ao mundo. Um mundo que passamos a carregar nos ombros. E que sabemos de antemão que, por mais que dê vivas à chegada da criança, nos vai colocar obstáculos enquanto mães que querem estar presentes. O equilíbrio entre as várias dimensões da vida está longe de ser real ou sequer bem visto, numa gestão perversa das prioridades. Sim, passamos a ser pessoas embeiçadas pelos filhos, mas também a estar imersas em muitas dúvidas, cansaço extremo e medos – quase sempre em silêncio porque queixumes é que não pode ser, já se sabe. Mas porque não? Na maternidade deveria haver espaço para a sinceridade e empatia, é só a vida real. Mas continuamos a preferir o discurso romanceado, mais fácil de engolir e que não levanta questões incómodas. Mas há uma pergunta que precisamos mesmo de fazer: porque é que as mulheres passam por isto em silêncio há milénios, e quem ganha com este silenciamento, estando ele tão carregado de dor e sacrifício?
Se aceitarmos que as mulheres têm razões para se queixar, que outras queixas poderão vir a seguir?
Há inúmeras explicações para isto, mas deixo-vos duas que podem servir de ponto de partida a alguma reflexão. Primeiro, o cliché de que este é o maior propósito da vida das mulheres, seguido da mentira mais vil de todas: que isto de conseguir tratar de um bebé é um talento inato para qualquer uma de nós. Não é. Acima de tudo, é uma questão de compromisso, de resiliência, de superação, de responsabilidade e de consciência quanto à nossa obrigação de garantir que aquela pessoa indefesa sobreviva. Mas como é que se admite ao mundo que afinal não temos assim tão presente aquilo que nos venderam como um dom feminino? Como é que o fazemos aos outros quando até mesmo a nós próprias é difícil assumirmos isto? Ninguém quer falhar no seu aparente propósito, nem nenhuma de nós quer ser rotulada de potencial má mãe num mundo que endeusa os estereótipos da maternidade e que penaliza moralmente quem põe em causa esta suposta grande certeza. Uma certeza desonesta, que alimenta totalmente a ideia de que as mulheres estão a cumprir o seu dever, já os homens, quando presentes e participativos, estão a ser espetaculares, mesmo que também estejam a fazer apenas a sua obrigação.
Isto leva-nos à segunda pista: a manutenção e normalização dos papéis de género nos quais assentam a nossa sociedade, justificando inúmeras situações de discriminação e desequilíbrio de oportunidades entre homens e mulheres. Entre elas, a desresponsabilização masculina quanto a tudo o que são tarefas associadas à prestação de cuidados, uma vez que não têm um “jeito inato para a coisa” – causa direta da sobrecarga feminina. Sobrecarga essa que fomenta muitas vezes a pressão e discriminação laboral que recai sobre as mulheres, a dificuldade de serem tidas em consideração em processos ora de contratação, ora de ascensão de carreira – ambos factores que condicionam a sua situação financeira e capacidade de independência. Claro que isto significa também que os homens têm maiores resultados financeiros, ou seja, não se põe fim à bola de neve que os remete para o papel de provedores do sustento familiar.
Quebrar este ciclo é muito complicado, e isto compromete seriamente a disponibilidade das mulheres para uma participação ativa noutras esferas da nossa sociedade. Enquanto as mulheres não estiverem de forma equiparada em cargos de decisão, e ao mesmo tempo forem silenciadas quanto às suas dificuldades na maternidade para não serem alvos de julgamento social, muito dificilmente estas matérias serão tidas como algo relevante. Não tenho dúvidas de que se fossem os homens a parir que as situações de violência obstétrica não tinham a dimensão assustadora que ainda têm nos dias de hoje, por exemplo. Ou que se fossem os homens os principais prestadores de cuidados infantis, já muito a lei teria avançado no que toca à criação de condições para a conciliação da vida profissional e familiar. E certamente mais proteções legais no mercado laboral que garantissem que ter filhos não fosse um factor penalizador para ninguém. Que existiriam também muitos mais mecanismos de apoio domiciliar especializado durante o puerpério. Ou que as licenças de parentalidade seriam maiores, pagas na totalidade e divididas de forma mais equilibrada entre progenitores. Uma coisa é certa, manter as dores femininas silenciadas é essencial. Porque se as deixamos reclamar sobre algo que é considerado apenas normal há séculos, que outras queixas poderão vir a seguir?
Eu tive a sorte de ter ao meu lado um companheiro presente, totalmente comprometido com a paternidade, e mesmo assim senti toda esta avalanche. Escrevo sorte porque é preciso ter noção que ainda sou a exceção e não a regra, num país onde tratar de bebés é considerado maioritariamente um dever feminino. Mas são tantas as mulheres que passam por isto sozinhas. E também tantas as que até têm companhia, mas que não significa que estejam acompanhadas. A todas eles não deixo apenas uma vénia de profundo respeito, deixo também um simbólico abraço apertado (que às vezes é o que mais precisamos no processo da maternidade). Sinceramente, não sei como aguentam.
Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.
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